extra-img

O Rio e a Sua História

O Rio e a Sua História

A importância do Rio Tietê para o Brasil e em particular para São Paulo fica evidenciada ao se analisarem as várias referências feitas a ele por historiadores, geógrafos, técnicos e cientistas, poetas e prosadores e, sobretudo, pelo depoimento do homem comum que, desde a fundação da cidade de São Paulo e sua expansão para o interior do território, acostumou-se a conviver com o rio.

            Conforme Maurício Pardé em seus trabalhos “Fleuves et Rivières”, um rio representa uma individualidade geofísica, viva e agente, sendo, talvez, tão complexo quanto é o ser humano: como este, tem lá os seus estágios cíclicos na vida: nasce, cresce, atinge a maturidade e passa pela decrepitude.

                        O padre Manuel da Nóbrega aconselhava já no período quinhentista que “todos deveriam fugir da penúria de Santo André onde não havia peixe nem farinha e, se chegassem ao Rio Piratininga (um dos primitivos nomes do rio), teriam tudo e sossegariam”.

            Mas desde que Martim Afonso de Souza o reconheceu como “um rio grande que enveredava pelo continente”, o Rio Tietê foi unanimemente apontado como um fator primordial na interiorização de São Paulo e do Brasil. Assim, Cassiano Ricardo enfatizou que o Tietê “era uma seta apontada para o sertão, a indicar-lhe o caminho”; Capistrano de Abreu ressaltou que a função dos Rios São Francisco e Tietê era da integração nacional; Afonso E. Taunay ao dissertar sobre o rio insistiu que seu nome está “indescritivelmente ligado à história da constituição territorial do Brasil”; Mello Nóbrega proclamou que às águas amarelas e quietas do Tietê despertam sonhos de aventuras e riquezas” e João Vampré assinalou: “a história do Tietê é a narrativa áspera e dramática dos esforços feitos para dominar e vencer obstáculos gigantescos que ele levanta diante dos passos do conquistador audaz”.

            Em resumo, foi o Rio Tietê que propiciou algumas Bandeiras e as Monções, ou Descimentos, até que o ciclo do muar, o advento do barco a vapor e os caminhos terrestres passassem a dominar o cenário da história. Essas expedições viriam enriquecer e alargar os horizontes da nação brasileira.

            O rio, embora as dimensões e proporções diminutas se comparado a outros rios que compõem diversas bacias hidrográficas em território brasileiro e do exterior, teve, além de sua participação no contexto histórico, um papel relevante, abastecendo de pescado a provinciana São Paulo até meados do século XX, e esteve integrado à vida dos cidadãos paulistanos proporcionando – em suas então bucólicas margens – o lazer, a prática de esportes e recreação; além de constituir cenário inspirador à amores e sensibilidades poéticas. Ele serviu ainda à expansão da cidade contemplando a população com o primitivo material para a construção dos primeiros edifícios, e suportou o transporte de habitantes e mercadorias.

            Paralelamente, de modo gradativo, incipiente no início, acentuado a partir dos anos 1950, foi sofrendo um processo de poluição, transformando-se em veículo receptor e transportador de resíduos domésticos e industriais que viriam provocar a quase completa deterioração de suas águas.      

            Represado em muitos trechos o Tietê teve o seu regime hídrico modificado de lótico para lêntico, sofrendo também em certos trechos a influência de dragagens diárias e processos de retificação. Atualmente quase nada resta emerso das cerca de quarenta principais corredeiras, cachoeiras e saltos originalmente existentes. O que levou milhões de anos para se formar, envolvendo espaço de tempo de eras e períodos geológicos foi, pela ação antrópica tecnológica, totalmente modificado em alguns poucos anos.

            Ao longo do Tietê, na extensão de 1.100 quilômetros do rio – que nasce a 25 quilômetros de Salesópolis, a 780 metros de altitude, nos contrafortes da banda ocidental da Serra do Mar e deságua no Rio Paraná, na divisa com o Estado do Mato Grosso – as margens foram dizimadas, surgindo zonas urbanas de mais de sessenta cidades ribeirinhas , incluindo a Região Metropolitana, com mais de 450 mil estabelecimentos comerciais e industriais e, 18 milhões de habitantes.

            Contudo, apesar de poluído e contaminado por toda sorte de poluentes, o rio quase moribundo ainda insiste em ser partícipe do desenvolvimento da metrópole paulistana, permitindo que suas águas sejam utilizadas na produção de energia elétrica.

            No passado, ainda que o rio fosse incriminado pelo fato de provocar inundações e facilitar a disseminação de moléstias, o equilíbrio existia, pois tais situações eram esporádicas e localizadas. Foi a atuação do homem que fundamentalmente alterou as condições do primitivo ecossistema e, de modo gradativo, levou a um acomodamento da sociedade na qual os cidadãos, paradoxalmente responsáveis pelo progresso, foram também aqueles que concorreram para levar o rio à situação de quase “inadimplência ambiental”, como enfatizo no livro "Do Lendário Anhembi ao Poluído Tietê".

            Atualmente não é mais possível conviver com o Rio Tietê lembrando as águas repugnantes e malcheirosas do Rio Aqueronte do Inferno de Dante.

            A população despertou, seja pela nova consciência trazida com o ensino da ciência ecológica e seus conceitos básicos relacionados à problemática ambiental (o que permite adjetivá-la de ciência ambiental) e a ênfase maior quanto aos impactos das ações antrópicas que é dada nos ensinos formal e informal; seja pela consciência isolada de alguns estudiosos e cientistas do passado; ou seja ainda pela ação moderna dos ambientalistas estruturados nas Organizações Não Governamentais-ONGs, e pressão exercida através da mídia catalisando o momentâneo entusiasmo dos cidadãos e a nova preocupação política.

            Necessário é, pois, intensificar o pouco que já foi realizado e está sendo feito, canalizar novos investimentos, provocar um mutirão se preciso para que o Rio Tietê volte a ser como o Rio Eunoe do Inferno de Dante, isto é, o rio de águas límpidas à entrada do Paraíso.

            O atual cenário degradado não está mais sendo suportado por todos que circulam e gravitam ao redor do rio na região metropolitana; como afirmou o filósofo Ludwig Fewrback, “a água é o primeiro espelho do homem”.

            No ambiente hídrico o ser humano pode pensar na sua imagem refletida e, embora a água não seja o símbolo da purificação, ela é no entanto, o próprio elemento eficiente da purificação.

            Rémy de Gourmont em Promenades Philosophiques ao se referir aos rios enfatiza: “O rio é uma pessoa. Tem nome. Este nome é muito velho, porque o rio, ainda que muito moço, é muito antigo. Existia antes dos homens e antes das aves. Desde que os homens nasceram, amaram os rios, e tão logo souberam falar, lhes deram nomes”.

            Qual teria sido a origem do nome desse rio, paulistano e paulista? Segundo a arqueóloga Solange Caldarelli “há pelo menos seis mil anos, populações procuram a bacia do Rio Tietê e dele se utilizam”.

Os primitivos nomes do rio obviamente só começam a surgir gravados nos antigos relatos e mapas da época da fundação da cidade. Muitas corruptelas e variações tais como Anhembi, Agembi, Aiembi, Anem by, Aniembi, Anhambi, Niembi e outras tantas designações são comuns nos antigos documentos.

A tradução desses vocábulos para a língua portuguesa é discutível e dependendo dos autores, ora quer referir-se as aves como o nhambu ou a perdiz européia, ora a uma erva rasteira de flores amarelas, “nhambi”, utilizada como condimento pelos nativos, ou mesmo na rudimentar odontologia de então, e ora como rio dos veados (anhangi).

Outras vertentes dizem que Anhembi é corruptela de i-em-bi, tendo o "i" o significado de não-liso, altos e baixos, obstáculos; o "e" representa a saída, a barra, a foz, e o “bi” refere-se a levantar, alçar, indicando um rio de leito acidentado; alguns entendem que Anhemby ou Añemby deva indicar a parte baixa do rio.

Quanto ao vocabulário Tietê, é tido pelo Padre Anchieta como referência à “madre ou mãe do rio”; muitos acham poderá ser uma palavra derivada de tié ou tei-tei, idioma tupi que designava uma ave tanagrídea ou fringilídia – canário de cor amarela. Tietê poderia também significar água volumosa e corrente ou água de mau gosto, ruim, de qualidade inferior.O certo é que ambos os nomes, Anhembi e Tietê, concomitantemente, persistiram por longo tempo.

Algumas crônicas de 1730, estudadas por Taunay, parecem dar conta de que o nome Tietê designava o rio desde a nascente até a cidade de Salto, e Anhembi dessa cidade à desembocadura no rio Paraná, após percorrer cerca de 1.100 quilômetros em território paulista. A dualidade de nomes persistiu até por volta de 1840.

O Rio Tietê venerado pelos indígenas que harmonicamente com ele conviveram, praticando seus rituais religiosos em uma intimidade que ia desde a recreação à higiene pessoal e à nutrição foi, a medida que predatoriamente o território ia sendo ocupado, levado a uma tal situação que já em 1820 era motivo de alerta de autoridades como os irmãos Andrada e Silva. Eles estavam preocupados com os Rios Tamanduateí e Tietê, “sem margens nem leitos fixos, sangrados em toda parte por sarjetas que formam lagos e pauis que inundam esta bela planície, e o que é mais para lastimar é que quase todos esses males não são obra da natureza, mas sim o resultado da ignorância dos que quiseram melhorar o curso desses rios”. 

Ocupação Territorial e Industrialização 

O território paulista teve primeiramente a região litorânea ocupada. Desde o descobrimento, e por cerca de cinqüenta anos, o povoamento foi se estendendo da Ilha de Santo Amaro para Cananéia. Nessa época Anchieta, preocupado com a destruição dos manguezais, alertava que seria excomungado aquele que fosse apanhado a “destruir plantas”.

O planalto, assinala o historiador Ernani da Silva Bruno, foi conquistado nos trinta anos seguintes quando então Santo André seria absorvido pela São Paulo de Piratininga. Desse povoado administrado pelos padres jesuítas partiriam, entre 1580 e 1640, as Bandeiras.

Nesse período, o recenseamento de 1593 registrava a presença na cidade de: 2 carpinteiros, 1 ferreiro, 2 alfaiates, 2 tecelões, 1 sapateiro e 1 oleiro.

Em 1640 iniciou-se a atividade de mineração que se estende ao ano de 1730. O ciclo de ouro acelera os Descimentos ou Monções pelo Rio Tietê até alcançar Cuiabá em viagens descritas como verdadeiras epopéias.

A partir de 1730 começou o comércio do gado que predominou até 1775.A essa altura a cidade de São Paulo, após quase duzentos anos daquele primeiro censo, contava com 10 carpinteiros, 21 alfaiates , 15 sapateiros, 4 ferreiros, 3 ourives, 4 seleiros e 4 pedreiros, todos devidamente licenciados com “carta ofício” e representados na Câmara.

Minas de ferro foram descobertas no Butantã e na região próxima a Sorocaba.Durante o ano de 1775 há a industrialização do açúcar e as grandes fazendas e engenhos persistem como atividade maior até 1822, sendo então substituídas pelo café, que exerceu seu domínio nas lavouras até 1888.

Ernani da Silva Bruno refere-se à época como da “fome de terras virgens”. Resultando não só o povoamento da área central do Estado no eixo que se estende às margens do rio Tietê, mas sobretudo ocasionalmente a destruição da maior parte da cobertura vegetal originalmente existente.

Com a revogação do Alvará de 1785, que proibia o funcionamento de fábricas no Brasil, e a transferência da corte portuguesa, teve início também o avanço industrial. Em 1815 a Fábrica de Ferro de Armas de Ipanema, próxima a Sorocaba, aumenta a produção e surge a Fábrica de Armas. Dois anos antes, Tomaz Rodrigues Tocha inaugura a primeira fábrica de tecidos, e onze anos depois aparecem as primeiras fábricas de algodão e começa a produção de cal.

Uma segunda fase de expansão da cultura cafeeira, de 1888 a 1930, é caracterizada pelo advento das estradas de ferro para escoar a produção até o Porto de Santos e a Fundação da Companhia Agrícola Imobiliária Colonizadora (CAIC) com a finalidade de trazer e fixar imigrantes europeus no campo.

Nesse tempo uma segunda fábrica de ferro é instalada em Jacupiranguinha e vão surgindo a companhia de iluminação a gás, as fábricas de óleo, tecidos, móveis, fósforo, gelo, chapéus, banha e outros acompanhadas das serrarias.

A partir desse momento a colonização e a expansão industrial que vinham se processando até certo ponto, de modo gradual e relativamente lento, passaram a ser extremamente rápidas, o que se acentuou ainda mais após as duas grandes guerras mundiais.

Ao constituir-se então em pólo de atração comercial e industrial, a cidade de São Paulo induziu grande imigração interna e externa. Todos esses processos não foram, infelizmente, ao seu devido tempo acompanhados de um adequado e necessário planejamento.A população paulista, que em 1890 era de 1.384.753 habitantes, dez anos depois ultrapassa os 2 milhões.

Em 1900 a cidade de São Paulo já albergava 165 estabelecimentos industriais com o predomínio das indústrias têxteis, metalúrgicas, fábricas de bebidas e marcenarias, na sua maioria instaladas entre os anos 1880 e 1890. Vinte anos se passaram e o número de ascendentes atingia 4.415, agregando a indústria farmacêutica. Em 1940 chegaram a 14.225 e em 1950 eram 24.159 os estabelecimentos fabris.

A ótica desenvolvimentista do final do século, adentrando no  final do milênio, entendia que quanto mais fumaça houvesse nas chaminés, mais o processo ficava evidenciado. Pouco importava a penúria e a miséria da classe operária, desde que a produção fosse garantida.

Passou-se de um período de escravidão declarada para a exploração velada, em nome do desenvolvimento. Imagine-se então pensar no meio ambiente da cidade da garoa circundada por exuberantes matas e uma incipiente rede hidrográfica.

A ordem natural era dar prioridade ao desenvolvimento industrial, acompanhado de uma aleatória expansão da rede urbana com ocupação de vales e escarpas em uma desenfreada impermeabilização dos terrenos.

Johannes Messener, em Ética Social, é claro ao expressar: “planejar e organizar arbitrariamente, em contradição com a ordem natural, redunda em sério prejuízo da sociedade; e por conseqüência, vêm a menoscabar a plenitude da vida dos seus membros, quer sob o aspecto econômico e social”.

Assim os rios, além de percorrerem uma bacia de drenagem completamente despida de vegetação, facilitando o carregamento de materiais devido à erosão, foram transformados em veículos transportadores dos esgotos domésticos das cidades e dos resíduos industriais nele lançados. A maioria foi ainda destinada à produção de energia para suportar a demanda sempre crescente das megalópolis e das indústrias. Foi este também o paradoxal destino do Rio Tietê que, por uma decisão sectária ao final do século, teve suas águas eleitas à geração de energia elétrica, energia esta que serve ao suporte exatamente daqueles que o poluem.

O professor Miguel Petrere Jr. em Seminário Internacional de Jornalismo e Meio Ambiente ocorrido em novembro de 1991, em São Paulo, afirmava que o Rio Tietê em seis de seus reservatórios produz energia elétrica correspondente ao uso de 113.650 barris de petróleo por dia, economizando anualmente 975 milhões de dólares para o Estado de São Paulo.

Por outro lado, é preciso lembrar que apenas 60% dos municípios da bacia possuem coleta de esgotos mas nenhum deles apresenta qualquer tipo de tratamento. Na Capital, região onde o rio está completamente poluído em uma extensão de 100 quilômetros, apenas 9 a 10% do total dos esgotos sofrem tratamento primário e secundário. 

Necessidade de Energia e Comprometimento da Qualidade Sanitária 

Na época em que slogans ufanistas apareciam na capital paulista – “São Paulo é o maior parque industrial da América Latina” – o rio Tietê e afluentes acompanhavam o “progresso” participando dos sistemas criados para a obtenção de energia.

Ao final do século XIX, 732,23% da energia era gerada a vapor; 21,87% de natureza hidráulica, o gás concorria com apenas 0,47% e 4,29% provinha da geração de eletricidade.

Em 1920 a eletricidade já representava 47,20% pois o Rio Tietê, desde 1910, recebeu em Parnaíba os primeiros “grandes” geradores hidrelétricos do Brasil (02Mw) ampliando-se até 1912 para 16Mw.

A história tem início em 1899 quando a Light, empresa canadense, recebeu a concessão para explorar os serviços de transportes urbanos na capital paulista. Inicialmente foi instalado um sistema gerador termo-elétrico enquanto a Usina de Parnaíba era construída. Para a operação desta usina deveria ser construída uma grande represa para regularizar a vazão do rio; hipótese afastada, pois o reservatório afetaria a cidade de São Paulo. Em 1908 nova concessão e o rio Guarapiranga, afluente do rio Pinheiros, viria a transformar-se na Represa Velha de Santo Amaro, depois chamada de Guarapiranga.

Outras concessões e a Light passou a deter o monopólio abrangendo São Bernardo do Campo, Santo Amaro, Guarulhos, Parnaíba, Sorocaba, São Roque, Ibiúna e Jundiaí. Em 1924 instalou-se a Usina do Rasgão; em 1927, o Projeto Serra levou a construção das Represas Billings e Rio de Pedras para gerar energia na Usina Henry Borden I, em Cubatão. Após 1936, o sistema foi ampliado com a operação da Usina de Porto Góes.

Praticamente trinta anos depois inaugurou-se a Usina Termoelétrica de Piratininga às margens do Rio Pinheiros.

Entre 1956 e 1961 concluiu-se a Usina Henry Borden II. A partir de então a Light não mais investiu nessa atividade, tornando-se mera distribuidora, passando os processamentos hidráulicos a “compromissos de governo”.

Ao revisar essas ações na instalação do sistema gerador de energia elétrica de São Paulo, em paralelo ao que foi o crescimento do parque industrial, fica a sensação para muitos de que São Paulo deve o seu “admirável desenvolvimento” quase que exclusivamente à grande obra da concessionária canadense. Ledo engano.

Os problemas que iriam advir da sectária decisão de se utilizar às águas dos rios junto à capital, inclusive o Tietê, apenas para a geração de energia elétrica e com sistemas de reversões gradativas dos corpos d’água que acompanhavam aleatoriamente os períodos de estiagem e de cheias, e a demanda decorrente da expansão do parque industrial e da explosão demográfica, não passariam despercebidos para muitos técnicos e intelectuais nas primeiras décadas do presente século.

Desde que a Light obteve as primeiras concessões do Congresso Estadual, que atendeu aos pedidos de Alexander Mackenzie para o uso das águas dos Rios Tietê e Guarapiranga, prenunciavam-se as dificuldades que a decisão fragmentária iria ocasionar: enchentes, não utilização de água para o abastecimento público, incremento da poluição e retardamento do desenvolvimento do parque industrial.

No que se refere ao uso das águas para abastecimento, a concessionária antecipava o perigo do uso das águas poluídas do Rio Tietê, contrapondo-se a opinião de sanitaristas notáveis como Francisco Rodrigues e Saturnino de Brito que, em 1911 e 1926, apresentavam relatórios de estudos conclusivos preconizando os usos múltiplos das águas, inclusive as do Rio Tietê e do Guariparinga para o abastecimento público. As vozes de Theodoro Sampaio, Ataliba do Vale, José Pereira Rebouças, Arnaldo Vieira de Carvalho, Clemente Ferreira, Emílio Ribas, Luiz Pereira Barreto e tantos outros seriam vencidas na luta pela preservação das águas, em face da pressão exercida, aliada à subserviência de certas facções políticas da época.

Em várias ocasiões os planos distorcidos e a visão imediatista seriam contestados e inúmeros políticos, dirigentes municipais e estaduais, técnicos e acadêmicos tentariam impedir ou modificar, sem sucesso, a sua implantação. Ao longo da história de São Paulo podem ser citados Jânio Quadros, Francisco Prestes Matos, Figueiredo Ferraz, Lucas Nogueira Garcez, Carvalho Pinto, Laudo Natel, Plínio de Queiroz, Braz Juliano, dentre outros.

O próprio Alexander Mackenzie, antes referido, ao escrever a R.C. Brown, na época da inauguração da Usina Henry Borden, em Cubatão, a 25 de outubro de 1926, relatava que: "durante o primeiro ano do nosso trabalho nós fizemos o menor barulho possível, pois dependíamos da assinatura de diversos atos governamentais e, em conseqüência, o público tinha pouca idéia sobre o que estávamos realmente fazendo e o que isto significava para São Paulo".

O rio então acabou poluído, deteriorado, praticamente desvinculado da composição paisagista da cidade.

Em todo este episódio do uso exclusivo da água para fins energéticos, sendo o recurso natural explorado sob a forma de monopólio, creio, voltávamos ao período setecentista quando os “aguadeiros”, muitos portugueses, que distribuíam a água à população em carroças-tanques, permitiam-se escrever a Portugal: “Á água é boa, o povo é burro, a água é deles e nós lha vendemos”.

Assim o Rio Tietê que era piscoso, inclusive na zona da Capital, passa a deteriorar-se, no início do século lentamente, e depois de modo acelerado. Atualmente recebe uma carga poluidora de cerca de 1.100 toneladas de matéria orgânica, sendo mais ou menos 800 provenientes de esgotos domésticos e 300 de resíduos industriais; seis toneladas de matéria inorgânica de natureza industrial e mais de 400 toneladas de lixo (resíduos sólidos).

As conseqüências são visíveis à vista desarmada, estando o rio com acentuada cor e turbidez transportando substâncias e materiais sólidos, partículas em suspensão e muitos outros produtos líquidos e também às vezes gasosos.

A leptospirose tem sido constantemente associada ao rio, principalmente nos meses de enchentes, e outras doenças parasitárias, micoses etc.

Além desses fatores que atuam como óbices à qualidade sanitária das águas, lamentavelmente verifica-se, ao se repassar a leitura dos vários projetos e planos concebidos para melhorar a qualidade das águas do Tietê, que a maioria foi modificada total ou parcialmente. A história mostra que decorre sempre defasagem de tempo mediando a seleção do tipo de tratamento, a elaboração do projeto, a alocação de recursos e início e término das obras, seja para verificar a vazão dos rios, para a construção da rede coletora e interceptores, seja para implantar e operar uma estação de tratamento de esgotos.

Desde Saturnino de Brito, já mencionado, passando por Plínio de Queiroz, 1927 e 1965, Whitaker, 1942, e Greeley & Hansen, 1967, o Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado–PMDI, vulgarmente chamado de Solução Integrada, e finalmente o Sanegran, observa-se a lentidão na seleção do projeto mais adequado e falta decisão política ou, o que é pior, as distorções para atender esta ou aquela facção que momentaneamente mantinha poder decisório. O resultado do atraso, levou o rio à situação ambiental que todos conhecemos hoje. 

Reflexões Finais 

O deplorável estado a que chegou o Rio Tietê teve como causa inicial a preocupação com a produção de eletricidade em detrimento do saneamento. Posteriormente, a situação agravou-se por uma série de circunstâncias: escassez perene de recursos financeiros ou má destinação dos recursos disponíveis; tarifas de serviços insuficientes; a existência de mananciais alternativos, ausência de fatos epidêmicos, ausência de vontade política, conformismo em face do desconforto e outros. Ainda, paradoxalmente, não há ressarcimento em pecúnia àqueles que fazem saneamento por aqueles que usam as águas dos reservatórios e do Rio Tietê para a produção de energia elétrica.

Contudo, a mim parece que o rio não deve ser encarado apenas no sentido prático, como um recurso natural a ser escolhido, ou melhor dizendo, utilizado, para dar visão menos economicista e mais ecológica.

De qualquer modo, todo o contexto relativo aos conflitos de uso da água na Região Metropolitana de São Paulo, sobretudo do Rio Tietê, exige uma análise abrangente, envolvendo a territorialidade e as diversas formas de apropriação.

O problema na realidade pode ser resolvido, até independentemente da problemática institucional, utilizando-se a técnica. Entretanto, não é possível esquecer a necessidade de haver uma organização jurídica e institucional que propicie uma atuação sistêmica, integrando efetivamente os vários órgãos que têm jurisdição na bacia hidrográfica.

Uma decisão política, escalonando e hierarquizando os recursos financeiros existentes, procurando carrear novos aportes e mobilizando a técnica e técnicos disponíveis, acompanhando a nova conscientização dos cidadãos que começa a surgir, fatalmente conduzirá a médio e longo prazos à recuperação do Rio Tietê.

 

  •  

  •